terça-feira, dezembro 02, 2014

Traz o selo?


É preciso ter passado os 50 para entender a tremedeira que esta inocente pergunta gerava nos novos e velhos, nos “tempos da outra senhora” quando, por qualquer motivo, tinham que se aproximar dum guichet. E não digo guichet público porque, naquele tempo, guichets privados só nos serviços monopolistas de água, electricidade e quejandos, que usavam no trato com os clientes a mesma arrogância dos serviços públicos.
Era certo e sabido que a primeira abordagem de qualquer repartição ou conservatória, depois do jogo da sorte ou do azar, em que sorte eram minutos de espera, azar algumas horas,
esbarrava no inevitável “traz o selo?”, como uma autêntica porta na cara.
A democracia trouxe mudanças, deixou de ser preciso ir ao outro lado da paróquia comprar um selo de tostões para abrir os balcões, e a jactância dos funcionários com a importância de serem “públicos”, deu lugar a um espírito de serviço, obediente a um sistema. Sistema que substituiu o selo pela senha, com inegáveis vantagens – é grátis, e está já ali à porta.
O cidadão enfrenta o pedestal das senhas, corre o menu, e dá voltas ao bestunto para decidir em que categoria cabe o seu problema específico, para não correr o risco de ver o “traz o selo?” substituído por um “para si é a senha E”, regressando à máquina e ao fim da virtual fila.
Depois pode distrair-se com o programa televisivo dos números a sucederem-se lentamente, até que um dos muitos “plins” anuncia a sua senha e o número identificador do funcionário à sua espera.
Eficaz, resolvendo bem o problema das filas múltiplas, para as múltiplas competências e disponibilidades de tratamento dos múltiplos problemas. Palmas para o progresso.
Ontem tive que me deslocar à zona de serviço ao cliente da Worten, em Leiria, que não conhecia.
Um espaço amplo, aparentemente bem cuidado e organizado, com 4 bancadas não numeradas, 3 vazias e uma ocupada por uma funcionária que atendia uma cliente. Lá dentro, no que parecia oficina anexa, algumas pessoas interagiam.
Não havia que hesitar, avancei para a bancada em serviço, e esperei atrás da cliente a ser atendida, a discreta distância, a minha vez. Algumas pessoas foram entrando, e esperando atrás de mim.
“Traz o selo? – desculpem, não foi bem assim – Tirou a senha?”
“Qual senha?”
Lá estava, à direita da entrada mas em lugar que não vi, a maquineta das senhas, pelo que, não tendo levado o selo, e ela me dirigi, para decidir se eu era “A – Contratos, B –Reclamações, C – Devoluções” ou outras letras e questões, que não li, pois eu era claramente C. Tirei a senha, constatando que todas as letras levavam à senhora única do atendimento, entrando no terceiro e último lugar da fila que antes do “traz o selo?” tinha liderado.
A bem da verdade, a senhora única deixou de ser única, e fui atendido por outra que entretanto chegou a outro balcão. Atendido com eficiência e simpatia bastantes para anular a irritação que o incidente me poderia causar:
A escravatura a rotinas amplia a desumanização da nossa vida, levando a que se perca de vista o essencial – sistemas servem pessoas antes das pessoas servirem sistemas. Numa situação de fila única de 3 clientes, o lapso de não ter usado o bom recurso que o sistema facultava, não justificava a inversão duma prioridade que todas as 3 pessoas presentes conheciam e seguramente, com ou sem senha, não duvidariam em respeitar.
Mas pensar é para os chefes (alguns!) – os funcionários seguem ordens e evitam riscos. Pelo menos é esse o sistema!


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