É preciso ter passado os 50 para entender a tremedeira que
esta inocente pergunta gerava nos novos e velhos, nos “tempos da outra senhora”
quando, por qualquer motivo, tinham que se aproximar dum guichet. E não
digo guichet público porque, naquele tempo, guichets privados só nos serviços
monopolistas de água, electricidade e quejandos, que usavam no trato com os
clientes a mesma arrogância dos serviços públicos.
Era certo e sabido que a primeira abordagem de qualquer
repartição ou conservatória, depois do jogo da sorte ou do azar, em que sorte
eram minutos de espera, azar algumas horas,
esbarrava no inevitável “traz o
selo?”, como uma autêntica porta na cara.
A democracia trouxe mudanças, deixou de ser preciso ir ao
outro lado da paróquia comprar um selo de tostões para abrir os balcões, e a
jactância dos funcionários com a importância de serem “públicos”, deu lugar a
um espírito de serviço, obediente a um sistema. Sistema que substituiu o selo
pela senha, com inegáveis vantagens – é grátis, e está já ali à porta.
O cidadão enfrenta o pedestal das senhas, corre o menu, e dá
voltas ao bestunto para decidir em que categoria cabe o seu problema
específico, para não correr o risco de ver o “traz o selo?” substituído por um “para
si é a senha E”, regressando à máquina e ao fim da virtual fila.
Depois pode distrair-se com o programa televisivo dos
números a sucederem-se lentamente, até que um dos muitos “plins” anuncia a sua
senha e o número identificador do funcionário à sua espera.
Eficaz, resolvendo bem o problema das filas múltiplas, para
as múltiplas competências e disponibilidades de tratamento dos múltiplos
problemas. Palmas para o progresso.
Ontem tive que me deslocar à zona de serviço ao cliente da
Worten, em Leiria, que não conhecia.
Um espaço amplo, aparentemente bem cuidado e organizado, com
4 bancadas não numeradas, 3 vazias e uma ocupada por uma funcionária que
atendia uma cliente. Lá dentro, no que parecia oficina anexa, algumas pessoas
interagiam.
Não havia que hesitar, avancei para a bancada em serviço, e
esperei atrás da cliente a ser atendida, a discreta distância, a minha vez.
Algumas pessoas foram entrando, e esperando atrás de mim.
“Traz o selo? – desculpem, não foi bem assim – Tirou a
senha?”
“Qual senha?”
Lá estava, à direita da entrada mas em lugar que não vi, a
maquineta das senhas, pelo que, não tendo levado o selo, e ela me dirigi, para
decidir se eu era “A – Contratos, B –Reclamações, C – Devoluções” ou outras
letras e questões, que não li, pois eu era claramente C. Tirei a senha,
constatando que todas as letras levavam à senhora única do atendimento,
entrando no terceiro e último lugar da fila que antes do “traz o selo?” tinha
liderado.
A bem da verdade, a senhora única deixou de ser única, e fui
atendido por outra que entretanto chegou a outro balcão. Atendido com
eficiência e simpatia bastantes para anular a irritação que o incidente me poderia
causar:
A escravatura a rotinas amplia a desumanização da nossa
vida, levando a que se perca de vista o essencial – sistemas servem pessoas
antes das pessoas servirem sistemas. Numa situação de fila única de 3 clientes,
o lapso de não ter usado o bom recurso que o sistema facultava, não justificava
a inversão duma prioridade que todas as 3 pessoas presentes conheciam e seguramente,
com ou sem senha, não duvidariam em respeitar.
Mas pensar é para os chefes (alguns!) – os funcionários
seguem ordens e evitam riscos. Pelo menos é esse o sistema!
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