terça-feira, dezembro 23, 2014

Grupos corais

Vivemos num mundo de modas, que tudo condicionam, em especial o instrumento privilegiado da sua promoção, a comunicação social. E agora, a moda é o canto coral. Não estou a pensar no cante alentejano, cuja celebração internacional poderia obrigar-nos a sestas inopinadas, com os sólidos blocos alentejanos a abanarem-se longamente em todos os écrans televisivos. A verdade é que tal forma de arte é pouco comercial, e no Alentejo nasceu uma mais rentável forma de negócio, explorando as peregrinações para Évora.
O coro mais ouvido na TV é o famoso poema “até ser condenado é presumido inocente”, executado em perfeita harmonia por todos os opinadores oficiais e oficiosos das TVs , onde apenas o dr. Mário Soares desafinou, quando, tentando usar um vozeirão, lhe saiu um falsete.
Mas não deixa de ser divertido ver tanta gente culta, tão diligentemente empenhada em respeitar a constituição, a violá-la por sistema.
Vejamos:  
O art.º 32º da Constituição, titulado “Garantias de processo criminal”, estipula, de facto, no seu número 2, que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação…”
Como resulta do enquadramento do texto, é uma garantia que limita e condiciona o exercício da justiça, mas não o direito à opinião. O cidadão comum, a quem não caiba qualquer acção no âmbito do exercício da justiça, não pode ver, por isso limitado o direito à opinião, expressamente conferido pelo art.º 37º da mesma Constituição.
Poder-se-á argumentar que o conflito entre os dois direitos, obrigaria os cidadãos a uma auto-censura, bloqueando o exercício do direito à opinião até à conclusão do processo judicial. Só que o nº 2 do mesmo artigo é muito claro: “O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. “Qualquer tipo ou forma de censura” tem que incluir a auto-censura, pelo que os silêncios dos comentadores perante os clientes das televisões que lhes pagam, violam claramente a Constituição.

Mas se o coro dos presumidores é infeliz, o mesmo se diga do grupo coral que contesta a estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal. Eu acho extraordinária a solução do artista, que, sem se desviar muito da figura do homenageado, consegue o dois-em-um, através dele homenageando também a Irina. Ou não?

terça-feira, dezembro 02, 2014

Traz o selo?


É preciso ter passado os 50 para entender a tremedeira que esta inocente pergunta gerava nos novos e velhos, nos “tempos da outra senhora” quando, por qualquer motivo, tinham que se aproximar dum guichet. E não digo guichet público porque, naquele tempo, guichets privados só nos serviços monopolistas de água, electricidade e quejandos, que usavam no trato com os clientes a mesma arrogância dos serviços públicos.
Era certo e sabido que a primeira abordagem de qualquer repartição ou conservatória, depois do jogo da sorte ou do azar, em que sorte eram minutos de espera, azar algumas horas,
esbarrava no inevitável “traz o selo?”, como uma autêntica porta na cara.
A democracia trouxe mudanças, deixou de ser preciso ir ao outro lado da paróquia comprar um selo de tostões para abrir os balcões, e a jactância dos funcionários com a importância de serem “públicos”, deu lugar a um espírito de serviço, obediente a um sistema. Sistema que substituiu o selo pela senha, com inegáveis vantagens – é grátis, e está já ali à porta.
O cidadão enfrenta o pedestal das senhas, corre o menu, e dá voltas ao bestunto para decidir em que categoria cabe o seu problema específico, para não correr o risco de ver o “traz o selo?” substituído por um “para si é a senha E”, regressando à máquina e ao fim da virtual fila.
Depois pode distrair-se com o programa televisivo dos números a sucederem-se lentamente, até que um dos muitos “plins” anuncia a sua senha e o número identificador do funcionário à sua espera.
Eficaz, resolvendo bem o problema das filas múltiplas, para as múltiplas competências e disponibilidades de tratamento dos múltiplos problemas. Palmas para o progresso.
Ontem tive que me deslocar à zona de serviço ao cliente da Worten, em Leiria, que não conhecia.
Um espaço amplo, aparentemente bem cuidado e organizado, com 4 bancadas não numeradas, 3 vazias e uma ocupada por uma funcionária que atendia uma cliente. Lá dentro, no que parecia oficina anexa, algumas pessoas interagiam.
Não havia que hesitar, avancei para a bancada em serviço, e esperei atrás da cliente a ser atendida, a discreta distância, a minha vez. Algumas pessoas foram entrando, e esperando atrás de mim.
“Traz o selo? – desculpem, não foi bem assim – Tirou a senha?”
“Qual senha?”
Lá estava, à direita da entrada mas em lugar que não vi, a maquineta das senhas, pelo que, não tendo levado o selo, e ela me dirigi, para decidir se eu era “A – Contratos, B –Reclamações, C – Devoluções” ou outras letras e questões, que não li, pois eu era claramente C. Tirei a senha, constatando que todas as letras levavam à senhora única do atendimento, entrando no terceiro e último lugar da fila que antes do “traz o selo?” tinha liderado.
A bem da verdade, a senhora única deixou de ser única, e fui atendido por outra que entretanto chegou a outro balcão. Atendido com eficiência e simpatia bastantes para anular a irritação que o incidente me poderia causar:
A escravatura a rotinas amplia a desumanização da nossa vida, levando a que se perca de vista o essencial – sistemas servem pessoas antes das pessoas servirem sistemas. Numa situação de fila única de 3 clientes, o lapso de não ter usado o bom recurso que o sistema facultava, não justificava a inversão duma prioridade que todas as 3 pessoas presentes conheciam e seguramente, com ou sem senha, não duvidariam em respeitar.
Mas pensar é para os chefes (alguns!) – os funcionários seguem ordens e evitam riscos. Pelo menos é esse o sistema!