quarta-feira, julho 02, 2008

As árvores que tapam a floresta

Anda o mundo alvoroçado, com crises brotando em cada canto, sem que ninguém se entenda sobre as verdadeiras razões dessas crises, e sem que as doutorais sentenças e previsões dos mais variados especialistas representem muito mais do que a necessidade de aparecer e ser falado.

Globalização, desemprego, universidades a formar para esse desemprego, endividamento, aumento dos combustíveis, rotura dos sistemas sociais, esmagamento da classe média, agravamento dos impostos, são algumas das preocupações de topo, cuidadosamente escalpelizadas e explicadas por um batalhão de especialistas, que, quando chega a hora de apontar saídas se refugiam no tradicional e cómodo – é imprevisível. (Curioso que alguém se disponha a ganhar honestamente a vida, fazendo previsões em domínios… “imprevisíveis”! Mas adiante.)

Será que o cuidado analítico posto na apreciação de cada um destes e outros problemas, não está a forçar uma visão tão próxima, que a vista das árvores impeça a percepção da floresta? E se todos os problemas avulso listados estivessem intimamente ligados, e não fossem mais do que evidências pontuais de um problema de fundo que o politicamente correcto “proíbe” de apreciar?

É essa tese que me proponho defender, num texto um pouco mais longo do que é habitual, e que, portanto, provavelmente ninguém terá a paciência de ler. De qualquer forma fica escrito.

Afastemo-nos um pouco (talvez um muito) das questões económicas, para podermos ter da economia mundial uma visão ampla, quer no plano geográfico, quer no plano histórico. O que foi, a traços largos, a economia mundial? O que representa, nesse enquadramento histórico, a situação actual? O que poderá acontecer?

Comecemos pelo passado:

Depois de milénios de dependência da terra e da natureza, em que a maior ou menor riqueza dependia exclusivamente do poder de cortar algumas cabeças e rapinar uns palmos de terra, com os descobrimentos e a consequente possibilidade de uma crescente actividade comercial, nasceu a verdadeira possibilidade de criar e acumular riqueza. A revolução industrial que se lhe seguiu apenas potenciou essa possibilidade, alargando os fundamentos da criação de riqueza – até aí essencialmente com exploração das necessidades materiais da sociedade, a partir de então acrescentando-lhe a exploração do potencial de trabalho humano.

A revolução industrial é marcada por um violento crescimento do fosso entre ricos e pobres, com a utilização do”exército” de fugitivos da agricultura para impor condições desumanas de trabalho nas fábricas.

(Não é intenção deste texto examinar em pormenor as incidências históricas de cada fase da evolução económica, mas algumas das afirmações que irei subscrever poderão parecer desajustadas a quem não tiver, destes e doutros importantes momentos históricos, um conhecimento mínimo e com alguma clareza).

O agudizar das desigualdades e das dramáticas condições de vida esteve na base do nascimento do sindicalismo, e das correntes socialistas, visando transferir o poder do capital para a força de trabalho. Muitas páginas poderiam ser escritas sobre esse tema (e foram-no, por gente muito mais habilitada que eu, pelo que, repito, não me alongarei em detalhes, centrando-me num aspecto que, menos abordado, é, no entanto, determinante).

A revolução comunista despoletou nas hostes capitalistas o sinal de alarme: havia que desmobilizar a revolta trabalhadora, e garantir a continuidade das sociedades de livre economia. A inteligente solução encontrada foi o reconhecimento dos sindicatos, e a negociação com as massas de crescentes melhorias nas condições de trabalho.

O resultado desse processo foi o surgimento da economia social, assente numa emergente classe média, cujo bem-estar e facilidades de acesso e progressão, passaram a ser exibidos como contraponto às restrições das ditaduras comunistas, e a engrossar as hostes dos defensores da livre economia.

A classe média tornou-se, com o tempo, no verdadeiro motor das sociedades ocidentais – suportando o grosso dos impostos, decidindo eleições, dinamizando pelo crescente consumo o crescimento das respectivas economias.

Mas a lógica do capitalismo mantinha-se inalterada, e a estratégica concessão que representou a economia social, cedo foi adaptada para continuar a servir os interesses do capital, através da criação da sociedade de consumo. Entenda-se que, a sociedade de consumo não tem nada a ver com a utilização pelos empregados dos seus melhores salários na melhoria das suas condições de vida, estando… para além disso.

Imagine-se uma família operária, inserida na dinâmica económica da economia social, e protegida das pressões da sociedade de consumo: a partir de determinado momento, o nível de rendimentos excederia o das necessidades, e entraria na poupança. Poupança que, na lógica da livre economia, viria, depois, a ser investida, trazendo à família rendimentos de capital, a juntar aos do trabalho (isto é normal, sendo, felizmente, a situação de milhões de pessoas no mundo; o problema é que a sociedade de consumo se atravessou, e fez dessa normalidade uma excepção).

O cenário era o de uma crescente democratização do capital, afrontando a sua conhecida lógica de acumulação. Como evitá-lo?

Criando a sociedade de consumo.

A “sociedade de consumo” é uma criação cultural geradora de uma dinâmica crescente de necessidades. A grande “indústria” da sociedade de consumo é a indústria das necessidades. Estratégias de pressão permanente sobre os cidadãos, “obrigam-no” a gastar de imediato tudo o que recebe, gerando, não a satisfação pelo que se adquire, mas uma crescente insatisfação pelo que não se adquiriu. E aqui espreita… o crédito.

Se é possível indicar um lema para a sociedade de consumo ele será:

Gastar até o que não se tem, para adquirir o que não se precisa.


Excelente negócio para o capital, que compensa, assim, a redução de ganhos resultante da estratégica distribuição de melhores salários, com os ganhos de negócios em crescimento. Se nos lembrarmos que, à medida que os bens adquiridos são menos necessários, a margem de especulação e exploração de vaidades é maior, estamos mesmo perante um “negócio da China”.

(Péssimo negócio para os assalariados: entretidos com o prazer volátil de consumir coisas de que eventualmente não precisam, nem reparam que arrastam ao longo da vida uma situação de pobreza constante, disfarçada com o consumo sistemático do seu melhor futuro, até que um dia… o futuro se revela outro, e se dá a violenta queda na realidade.)

Mas a estratégia triunfou: esmagados entre a euforia dos trabalhadores da livre economia, e a arrastada pobreza geral (inteligentzia aparte, mas isso são outras contas…) nos países socialistas, o comunismo soçobrou.

Foi a euforia geral nas sociedades livres, mas… justificar-se-ia? Alguém se lembrou que a ameaça da ditadura comunista foi a verdadeira razão de ser da economia social que levou à economia de consumo? Alguém perdeu tempo a pensar como seria o mundo, agora que o capital deixava de ter razões estratégicas para aceitar uma distribuição de riqueza lisonjeira para o universo do trabalho?

A queda do comunismo foi a libertação do capitalismo. Não será o cenário que se vive hoje o chegar das primeiras facturas dessa liberdade?

Estamos ou não a assistir a uma dinâmica económica semelhante à da revolução industrial, com a diferença que hoje existe uma classe média a atrapalhar, e que, portanto, tem que ser esmagada como alguns analistas denunciam?

É ou não verdade que o “elevador social” das universidades encravou, deixando a maioria dos seus transportados no patamar da “geração mil euros” ou abaixo?

É ou não verdade que a dinâmica de substituição dos trabalhadores europeus (e americanos) por africanos e asiáticos em fuga de economias de subsistência, se está a fazer com reduções de custos idênticas às proporcionadas pelos antigos “exércitos proletários em fuga da agricultura” no ocidente, e com eliminação na estrutura de custos das empresas, dos encargos sociais em tempos cedidos aos sindicatos?

É ou não verdade que pela Europa fora os trabalhadores e seus sindicatos estão a prescindir de direitos e regalias os mais diversos, desde remunerações a horários de trabalho regredindo sistematicamente nas condições de trabalho?

É ou não verdade que os sindicatos deixaram de existir como instrumento regulador, anulados pela facilidade com que se muda para "ali" qualquer projecto económico quando incomodado "aqui", limitando-se hoje a discutir pormenores do dia a dia, e a exibir-se nos sectores que não podem ser deslocados (Estado e transportes), para fazer de conta que existem e justificarem os empregos?

É ou não verdade que, a redução de empregos e remunerações está a fazer convergir nos bancos (estruturas básicas do capital) muitos dos bens adquiridos em função da economia do optimismo e que, com o regresso à economia real se revelam além das possibilidades?

É ou não verdade que o dumping social está, de novo, a colocar-nos à porta produtos fabricados com recurso a trabalho infantil ou escravo?

Com tanta semelhança, quais as diferenças?

A existência da tal classe média, que resiste, mas, em todo o mundo livre em acentuada perda. Até onde?

O âmbito das mudanças – a globalização coloca disponíveis custos salariais irrisórios, dispensa custos sociais, e liberta dos controles sindicais. A universalização do processo de “reproletarização” anulou todos os controles sociais e políticos.

E nada mais!

(Ao reler o texto até aqui senti o risco de lhe ser atribuída uma perspectiva demasiado sindical, redutora para um maniqueísmo simplista: trabalhadores-vítimas patrões-carrascos. Nada disso! É bom que se entenda que a dinâmica instalada tritura tanto empregados como patrões que não se adaptem às novas regras do jogo, sobretudo os que, pela menor dimensão ou características do negócio tenham menor mobilidade.)

Não há ideologias nem governos.

Qualquer partido de poder (ou com ambições a lá chegar), em qualquer país ocidental, começa por fazer a sua declaração de fé no Liberalismo e só depois se preocupa com programas políticos. Ou seja, começa por garantir ao capital que não intervém na sua natural dinâmica acumulativa, e só depois disso (e com isso), se aplica na escolha dos critérios de gestão dos pormenores. Os “pormaiores” estão para lá da margem de actuação dos “governos”.

O que distingue, em Portugal o actual PS do PSD ou do CDS? “Clubes” diferentes, com pessoas diferentes, mas, a partir do momento em que esperam manter o poder ou lá chegar, subordinadas à mesma política essencial: submissão aos interesses do capital, subserviência no esforço de o convencer a vir para cá ganhar dinheiro. As diferenças são mero pormenor, incluindo as várias caras e discursos para os lugares de evidência, e pouco mais.

Qualquer partido que não beije a mão do Liberalismo é hoje meramente decorativo, ou reminiscência histórica.

Mas, se isto é assim, como fundamentar a esperança (“obrigatória”) de que as coisas vão melhorar? Como entender a aceitar os sorrisos governamentais?

O que é que vai, no futuro, forçar o capital a recuperar as preocupações de distribuição social de ganhos?

O que é que pode fazer inflectir a segunda revolução industrial?

Se alguém soubesse…

Mas há pistas, e voltarei a elas em breve.

2 comentários:

Margarida disse...

Olá1
Grande análise, gostei de o ler, escreve mais.
Guida

xintola disse...

vem em breve,gostei de ler e,não sei quem és solopes mas parti-lho da tua opinião,voltarei pra ler mais,até ao teu regreço